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Em recente resolução, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ) publicou no Diário Oficial do Rio de Janeiro uma proibição aos médicos de aderirem a “quaisquer documentos, dentre eles o plano de parto ou similares, que restrinjam a autonomia médica na adoção de medidas de salvaguarda do bem-estar e da saúde para o binômio materno-fetal.”

A medida expõe a fissura aberta de um sistema obstétrico agonizante que tenta agarrar-se a uma bóia de salvação feita de conceitos equivocados. Para começar a  conversa, é preciso entender que um plano de parto só é necessário porque as mulheres precisam proteger-se de uma assistência arcaica que perpetua procedimentos inadequados e danosos que ferem a integridade física e emocional de mulheres e bebês. Fosse a assistência adequada, seguisse ela as recomendações científicas, respeito e cuidado nenhuma mulher precisaria “lembrar” seus cuidadores o que deveriam fazer num dos momentos mais transformadores da vida de uma família.

Apesar de desgastado, é bem conhecido o discurso segundo o qual as mulheres colocam a vida de seus bebês em risco por “modismos” conforme afirma o autor da resolução. Ser considerada um contâiner de feto, ou única e exclusivamente por suas “propriedades reprodutivas” e não um ser dotado de agência tem limitado a autonomia das mulheres e não é coincidência que essa argumentação seja sacada da cartola à menor tentativa de assumirmos controle sobre nossas vidas. Quem lê o primeiro parágrafo da justificativa da resolução pode ler também nas entrelinhas, “assassinas”, “aborteiras”.

No entanto, toda mulher que já gestou ou acompanhou de perto alguém que o fez, sabe como o coração se aperta de preocupações e fantasias quanto à saúde de seu rebento e como tudo que se deseja é uma criança saudável. Nenhuma mulher abre mão disso. Uma das mulheres que entrevistei, em minha dissertação sobre a construção de plano de parto em uma unidade básica de saúde da periferia de São Paulo, disse que sentia-se, a cada consulta com um ginecologista de plano privado, como uma bomba relógio, prestes a explodir.  O controle de peso, de pressão, de glicemia, eram preponderantes sobre o cuidado que ela sentia merecer. A medicina é hábil em minar a confiança das mulheres e mantém até o fim esse discurso sobre RISCO, que passa a justificar intervenções descabidas. O cuidado que procurava e merecia ela encontrou nas obstetrizes que passaram a atendê-la no posto de saúde. “Elas fizeram com que eu me sentisse cuidada. Elas davam tempo para eu escutar o coraçãozinho do bebê e ficavam felizes junto comigo a cada batida. A consulta era uma festa”.  Portanto a verdade é que as mulheres querem segurança aliada a cuidado, elementos que podem e devem andar de mãos dadas.

Além disso, a ideia de que a tomada conjunta de decisões entre profissional e mulher possa limitar a “autonomia médica” para “salvaguardar a vida do binônimio” é na verdade um embuste. Porque vejam bem, na imensa maioria das vezes, há sim a possibilidade de se conversar sobre condutas, explicar a necessidade de determinado procedimento e decidir conjuntamente.

Há que se considerar que existem diferentes graus de exercício de autonomia durante o parto. Ninguém vai perguntar para uma mulher convulsionando por uma Eclâmpsia se ela quer receber sulfato de magnésio. Medicação, aliás, muitas vezes não prescrita, um dos motivos para vergonhosa taxa de mortalidade materna brasileira. Por outro lado, diante de um trabalho de parto prolongado, depois das medidas necessárias (isso se a mulher foi mesmo internada em franco trabalho de parto) e respeitando-se o tempo que ele pode levar, é possível discutir a introdução de ocitocina sintética. Porque uma mulher que constrói um plano de parto, aprende que não é um “sorinho” (eufemismo infantilizador que desconfia da capacidade cognitiva das mulheres), aprende quando está indicada, que não deve ser usada rotineiramente, e também seus riscos. Também aprende que o “piquezinho” é na verdade a episiotomia, procedimento que não deve ser realizado rotineiramente pois sua realização aumenta a chance de lacerações graves, dor e infecções. E que para evitar lacerações deve empurrar o bebê em seu tempo. O papo sobre episiotomia leva à conversa sobre posição de parto e a mulher sabe que há várias posições  para parir que levam a menos sofrimento fetal e maior conforto. E quando uma mulher se levanta, deita de lado, de cócoras ou fica de quatro, o sistema em torno dela precisa mudar, é preciso adaptações de salas, de estrutura, de profissionais, é preciso movimentar ideias e corações. É preciso pensar fora da caixa. Mas pensar fora da caixa não é muito próprio de um sistema construído em caixa-forte. Por isso ele grita, chama as mulheres de loucas e irresponsáveis. Mas nessa não caímos mais.

As mulheres sabem que o que pedem em seus planos de parto não é nada mais, nada menos do que o que precisam para um parto seguro. Mas essa ferramenta educativa e protetiva é considerada por setores conservadores como uma inversão insuportável de hierarquia. “É como os passageiros dizerem para o comandante o que precisa ser feito durante um vôo em pane”, ouvi de um chefe de serviço de obstetrícia. Não, não é a mesma coisa. Ninguém está questionando a formação do comandante como as mulheres tem questionado a formação médica e o modelo de assistência atual. Ninguém anda precisando pegar em livros e artigos sobre aviação para exigir que o comandante faça diferente. Mas as mulheres e suas doulas estão sim precisando entender de nível de evidência científica e direitos para exigir mudanças na maneira como são atendidas.

E apesar de funcionar muito em nível individual, já que cada mulher escreve seu plano de parto e tenta a sorte em maternidades públicas e privadas, um plano de parto, instituído como política pública, pode ser muito mais.  Pode ser uma ótima estratégia para discussão de práticas dentro das instituições, principalmente nos espaços colegiados previstos pela Rede Cegonha, como o Fórum Perinatal, que garante (deveria garantir?) a participação de usuárias. Pode disparar a necessária discussão e pactuação entre diferentes atores da assistência pré-natal e parto para a construção de linhas de cuidado que garantam a integralidade da atenção.

Se a exigência de mulheres por uma assistência adequada tem provocado o   “abandono da obstetrícia por médicos competentes que não aceitam se submeter a isso”, acho mesmo que esses profissionais deveriam procurar um rumo melhor. E isso não significa deixar o obstetrícia. Eles deveriam estar em centros cirúrgicos realizando os procedimentos para os quais supostamente foram treinados.

Isso porque vivemos um verdadeiro paradoxo: profissionais altamente especializados atendendo partos de risco habitual e ao mesmo tempo pouco treinados para resolução de situações críticas. Desconhecem manobras adequadas para resolução de distócias e por isso agarram-se com unhas e dentes à manobra de Kristeler, a indicação abusiva de cesarianas não permite que residentes sejam treinados para uso de fórceps e vácuo extratores e diante de uma hemorragia pós-parto que não responde a medidas medicamentosas (quando estas são adequadas) também não têm habilidade para procedimentos cirúrgicos.

Queremos que obstetras estejam nesse lugar em que médicos gostam de estar, salvando vidas.  Mas definitamente não é o plano de parto que nos provoca a vergonha de nossas taxas de mortalidade materna mas sim que não se escute a queixa de uma mulher que diz estar sangrando, que não se use as medidas adequadas para tratar uma hemorragia pós-parto, que se prescreva tão pouco sulfato de magnésio, que se limite o acesso a métodos contraceptivos como DIU e pílula do dia seguinte, que o aborto seja ilegal, todos esses atravessados por um  racismo institucionalizado que mais mata mulheres negras. É isso que mata mulheres. Demandar uma assistência segura não. Demandar uma assistência segura vai continuar sendo a maneira de mulheres conseguirem parir com respeito e dignidade. Ainda que por vezes sofram represália por expressarem seus interesses e por isso seja necessário judicializar a questão. O que não funciona com conversa talvez funcione com a formação de advogados e juízes.

No mundo socialmente desenvolvido não são profissionais altamente capacitados para a exceção que atendem a regra. Os “não-médicos”, enfermeiras obstétricas e obstetrizes, quando bem treinados(as) trabalhando de forma articulada com profissionais médicos são a resposta para a crise assistencial que vivemos hoje. Precisamos de outro modelo. Precisamos de Casas de Parto e Centros de Parto Normal. É claro que há muitas maternidades em processo de adequação. A pressão tem funcionado em muitos lugares, mesmo que timidamente, principalmente em locais que são também centros de ensino. Mas nosso país é muito grande e ainda se vê muita violência na assistência ao parto.

Portanto, caras ativistas, doulas, enfermeiras e médicos de família não vamos deixar que uma ferramenta tão importante como o Plano de Parto seja desqualificada. A construção de um plano de parto é momento educativo de suma importância. A mulher precisa compreender o que está sendo solicitado. Imprimir uma página da internet como check-list pode não proporcionar a compreensão sobre o que está sendo solicitado. Uma carta escrita do próprio punho “Cara equipe que vai me atender, esse é um momento muito esperado e especial, gostaria de conversar com vocês sobre coisas que são importantes para a gente” tem efeito bem diferente de um pé na porta com  uma lista de exigências. A isso chama-se resistência acomodada. Mesmo diante da situação beligerante em que se transformou a assistência ao parto é preciso confiar na possibilidade de profissionais serem afetados pelo desejo legítimo de as pessoas viverem seu parto de maneira feliz.

E no fim das contas, é disso que se trata, que todos os envolvidos possam gozar do prazer que é parir e observar um bebê chegar em ambiente seguro e harmonioso. Lágrimas e sorrisos no rosto do pai, companheira, avó. Vida quente nas mãos de quem a recebe. Coração pulsando de emoção por essa coisa indizível que é o nascer. Essa sensação de quem já pariu ou vivencia isso no seu cotidiano de estar fazendo o bem, de estar deixando um legado para o futuro sem precedentes, a vida sendo recebida com amor, com ternura. É uma verdadeira revolução para a qual nem todos estão preparados, mas que quando vivenciam não querem abandonar. Pode parecer ingênuo, mas eu quero acreditar que  alguns profissionais ainda precisam ser tocados de verdade por esse momento para que deixem de temer um plano de parto.

Halana Faria – Ginecologista e Obstetra. Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde

 

 

 

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