trombose

 “Porque seu corpo causa suspeição, e porque ela o enxerga com alarme, ele parece estar doente, ele está doente…” Simone de Beauvoir, O segundo sexo

A contracepção hormonal já foi entendida como parte da revolução que bradava: “um filho quando eu quiser, e se eu quiser”. Na época, questionamentos por parte de ativistas feministas da saúde eram vistas como pouco estratégicas, porque a preocupação era avançar no acesso à contracepção. No entanto, um acúmuo de conhecimentos e relatos tem nos permitido refletir em que medida sua difusão tem sido realmente libertadora.

De maneira alguma pretende-se fazer coro à censura vinda do fundamentalismo religioso, um retrocesso no já minguado terreno dos direitos sexuais e reprodutivos.  O interesse aqui é discutir como atualmente não há verdadeiro direito à escolha, mas sim o monopólio de uma solução para a “instabilidade e imprevisibilidade” femininas, construída (e fortemente introjetada) por um discurso misógino e capitalista.

         “Uma mulher que não menstrua é o ideal de sujeito neoliberal. Um corpo menstruado vaza, é imprevisível, suas emoções estão aumentadas – por isso esse corpo é visto como um problema para a economia neoliberal. Uma mulher menstruando não pode apresentar-se como racional, não está preparada para participar do consumismo 24h por dia, sete dias da semana. Um corpo que não menstrua está muito melhor adaptado para o sucesso do mercado em uma economia de consumo” Kissling – Capitalizing on the curse: the business of menstruation

A defesa  de que mulheres não deveriam menstruar foi fortemente propalada pelo médico brasileiro Elisimar Coutinho, autor do livro ‘A sangria inútil’. Figura ligada à OMS (Organização Mundial da Saúde) e grande entusiasta dos implantes subdérmicos. Sua teoria pseudo-científica sugere que as mulheres das cavernas tinham um filho atrás do outro e que por isso o “natural” seria não menstruar. Essa ideia perpetua-se em consultórios médicos em livretos sem ficha técnica com os dizes “Viva sem menstruar!”

“Eu não gosto de ver a mulher das cavernas saindo delas…eu não acho que elas saiam de lá por boas razões” Laura Elridge – In Our Control

Não há uma verdade sobre a mulher, mas muitas tentativas de construção verdades, inclusive científicas. E com relação à supressão da menstruação há basicamente duas ideias contraditórias. Menstruar seria “não natural” e por outro lado, não menstruar seria um avanço tecnológico que nos permite ultrapassar os limites de ser humano. Talvez essa confusão seja mesmo um reflexo de nossa era:

“Uma das características mais notáveis desta nossa era (chamem-na pelo nome que quiserem: a mim, “pós-moderna” não me desagrada) é precisamente a indecente interpenetração, o promíscuo acoplamento, a desavergonhada conjunção entre o humano e a máquina. Em um nível mais abstrato, em um nível “mais alto”, essa promiscuidade generalizada traduz-se em uma inextrincável confusão entre ciência e política, entre tecnologia e sociedade, entre natureza e cultura” Donna Haraway – Antropologia do Ciborgue

As drogas propagandeadas para supressão da menstruação estão sempre aliadas a uma mensagem negativa sobre as mulheres, suas menstruações e seus corpos. Um discurso que liga seu uso a um determinado estilo de vida, um item de consumo descolado de sua função. Assim, não menstruar passa a ser visto como cool, hype, moderno.

Entre trabalhadoras  essa norma pode chegar de maneira muito cruel. Por exemplo, algumas fábricas de países ditos desenvolvidos exigem que suas funcionárias usem braceletes indicando seus períodos menstruais para justificar idas mais frequentes ao banheiro. Controle e biopoder travestidos de cuidado, porque não menstruadoras (para incluir aqui homens trans) podem ser vistas como mais produtivas dentro dessa lógica.

A história e o presente também estão cheios de exemplos de como a contracepção foi e é utilizada com fins eugenistas para limitar a fertilidade de mulheres pobres e negras de forma coercitiva, com o discurso de que assim se eliminaria a pobreza. No Brasil mulheres pobres foram esterilizadas com laqueaduras contra sua vontade. Nos EUA legisladores propunham que só fossem dados benefícios sociais a mulheres que tivessem implantes contraceptivos. Atualmente a fundação Bill e Melinda Gates junto a Bayer continua promovendo (ou forçando?) a distribuição de implantes entre mulheres africanas.

         É preciso fazer um parêntesis para responder às beneficiadas por essa mesma indústria, que a essas alturas estão com punhos em riste…Sim! Muitas mulheres beneficiam-se de métodos hormonais, principalmente aquelas que sofrem de patologias ginecológicas como a endometriose (ainda que estas sejam diagnosticadas em excesso…) e também aquelas para quem os ciclos são dolorosos. As pílulas (de amigas e irmãs) podem ser ainda um primeiro recurso acessível para que jovens meninas trans construam sua identidade. No entanto, que possam ser úteis em diversos contextos não justifica que sejam prescritas como caramelos.

Diferente do que se propagandeia as pílulas não mimetizam nosso ciclo menstrual. Elas agem como um disruptor endócrino (como também o são alguns produtos de beleza e de higiene -surfactantes ou tensoativos; selantes para dentes; solventes; agrotóxicos e os plásticos – PVC, isopor e outros, fitoestrógenos) causando problemas ambientais e para a saúde humana e animal que deveriam estar na ordem do dia. Em nosso corpo  atuam inibindo a ovulação mas também podem:

  • alterar a função da tireóide, do sistema imunológico, e do metabolismo de açúcares
  • provocar alterações de humor, libido, memória e concentração
  • Atuar como co-carcinógeno em conjunto com HPV no câncer de colo de útero
  • Diminuir a absorção de nutrientes
  • Causar dor de cabeça e enxaqueca

Métodos de longa duração como o implante e o DIU Mirena aumentam a dependência das mulheres em seus médicos porque precisam destes para retirá-los. E muitas vezes são convencidas a continuarem com o método mesmo que tenham repetidas queixas de efeitos colaterais. O DIU Mirena pode perder o fio e ser necessário um procedimento cirúrgico para retirá-lo (Histeroscopia). O implante (Implanon) pode migrar para baixo do músculo e exigir uma pequena cirurgia para retirá-lo. A Depo-provera, uma injeção trimestral pode causar perda da massa óssea quando usado por longos períodos.

Assim, o risco de trombose (maior em algumas pílulas e com o anel) é uma consequência rara porém grave de um amplo espectro de problemas causados pelo uso das pílulas, anel vaginal e implantes (importante lembrar que esse risco é muito, muito pequeno se foram afastadas história pessoal e familiar de trombose, e fora de situações que exijam imobilidade como cirurgias e traumas).

O fato é que a maioria das mulheres não vai experimentar efeitos colaterais ou  percebê-los como prejudiciais. Além disso, cada mulher escolhe seu método contraceptivo com base em muitas questões: facilidade de uso, interferência em sua vivência da sexualidade, valor, etc. E viver, afinal de contas,  é também administrar riscos. Por isso é melhor correr de discursos que pretendem demonizar ou abolir esse ou aquele método. O que precisamos é de crítica e informações para fazermos nossas escolhas. E quando trata-se de contracepção (e de vida!) não há uma escolha correta para todas, mesmo que a mensagem cultural que recebamos seja decorrente do monopólio da contracepção hormonal como opção.

Mas por que médic@s não discutem alternativas não hormonais? Talvez primeiramente por serem bombardeados pela propaganda de laboratórios farmacêuticos. Segundo porque não são treinados para uma escuta qualificada da queixa das mulheres, que chegam aos consultórios suspeitando de efeitos colaterais e acabam ridicularizadas ou consideradas hipocondríacas. Terceiro porque a ideia de que é preciso uma medicação que corrija as mulheres cabe perfeitamente no modelo lógico da ginecologia. Quarto porque nessa mesma ideologia uma mulher não é suficientemente capaz de aprender a ler seu próprio corpo e ter responsabilidade para usar métodos de barreira. Por último porque algumas opções como o DIU de Cobre tem uma imagem manchada pelos primeiros exemplares (Dalcon Shield dos anos 70) que causaram infecções, perfurações e até morte de algumas mulheres.

“A pílula promove e perpetua a suspeição e desconfiança sobre os nossos corpos” Holly Grigg-Spall – Sweetening the pill

“Não conheço nenhuma mulher – virgem, mãe, lésbica, casada, celibatária, tire ela seu sustento como dona de casa, garçonete de festas ou técnica de tomografia cerebral – para quem o próprio corpo não seja uma questão fundamental: seus significados encobertos, sua fertilidade, seu desejo, sua assim chamada frigidez, seu discurso sangrento, seus silêncios, suas mudanças e mutilações, suas violações e maturações. Existe hoje, pela ‘primeira vez’ a possibilidade de converter nossa fisicidade ao mesmo tempo em conhecimento e poder” Adriene Rich – Of woman born

Até hoje ensina-se (quando se ensina…) que a ovulação ocorre no meio do ciclo, ou seja, no 14o dia no caso de um ciclo de 28 dias. No entanto, cada mulher vai ter sua fase pré-ovulatória de um tamanho diferente e ovular em um dia diferente. Isso pode ser observado usando-se o método de percepção de fertilidade. Ah, mas medir temperatura e observar o próprio muco dá tanto trabalho…sim, tomar consciência e adquirir hábitos condizentes com o discurso que queremos ter diante do mundo dá trabalho. Não há dúvidas. Não é para todas. Mas pode ser muito empoderador e virar a mesa para que ao invés de perguntarmos, qual o prejuízo da pílula, passemos a perguntar:  quais os benefícios de ovular?

Uma mulher que conhece seu período fértil talvez não dê sorte ao azar e use com mais regularidade a camisinha ou um diafragma. Mesmo que não tenha relações, ou faça sexo com mulheres, pode compreender seu ciclo e possíveis irregularidades. Quando (e se) desejar engravidar, vai ter mais confiança sobre os dias em que deve focar. Se não conseguir engravidar vai ter parâmetros para uma discussão com seu médico: “então, tenho observado que minha fase lútea é curta, como você pode me ajudar?” Isso pode parecer trivial para as mulheres que conseguem engravidar com facilidade. Mas lembremos que há uma ávida indústria da infertilidade tachando mulheres de inférteis e alimentando-se de sua ignorância.

“Quando [as mulheres] param o anticoncepcional não sabem quanto tempo levará para voltarem à fertilidade e também assumem que problemas que tinham com seus ciclos tenham sido ‘tratados’ pelo uso da pílula […] São oferecidas técnicas de fertilização muito antes do que seria realista para conseguir engravidar […] Um estudo nos EUA demonstrou que somente 13% das mulheres buscando auxílio para engravidar em clínicas sabiam identificar seu período fértil”. Kerry Hampton –Fertility-awareness knowledge, attitudes, and practices of women seeking fertility assistance

Em um contexto de crescimento de casos de HIV entre mulheres jovens é interessante perceber como o predomínio da contracepção hormonal como oferta pode refletir-se no não uso de preservativos. E também como o enfoque em métodos hormonais talvez deixe de forçar  o mercado a produzir camisinhas de melhor performance e a preços mais acessíveis.

“No Japão somente 1,3% das mulheres usam contracepção hormonal […] Trata-se de um mercado criativo para melhorar a sensibilidade e performance dos condoms. Marcas como Crown e Beyond seven usam sheerlon ou invés de látex, tem diferentes tamanhos, são resistentes e elásticas” Holly Grigg-Spall – Sweetening the pill

Um dos principais motivos para que jovens deixem de usar camisinha nas relações é o “amor”. “Ah, nós usávamos camisinha mas agora ficou sério e não usamos mais, queria que você me receitasse um anticoncepcional”. Mesmo entre casais assumidamente não-monogâmicos, praticantes de poliamor e outros, a camisinha fica reservada para os parceiros satélite. É certo que essa discussão dá pano pra manga… mas para não perder a oportunidade, sobre a noção de que a camisinha atrapalha a relação sexual tem essa entrevista maravilhosa da Jout-Jout.

Certo é que a pílula joga para debaixo do tapete a conversa sincera que pais deveriam ter com suas filhas e filhos sobre a vivência de suas sexualidades. Porque quando a menina, por vergonha de ter camisinhas na bolsa passa a usar pílula, mais aceita socialmente e com a desculpa de regular a menstruação e tratar acne, deixa-se de tocar nesse assunto.

Nossas escolhas são moldadas a partir das opções que nos são apresentadas, dos exemplos de mulheres ao nosso redor, pela opinião médica (talvez ainda o principal fator) e pelo que é aceito socialmente. A discussão sobre contracepção é um grande exemplo disso. Talvez questões precisando de respostas sejam: Como podemos tornar métodos contraceptivos seguros e eficazes acessíveis para as mulheres em suas unidades básicas de saúde? Como limitar a influência da indústria sobre a prática médica? Como exigir transparência dos laboratórios para que divulguem e responsabilizem-se pelos danos causados por suas drogas? Como produzir um novo corpo de evidências a partir das novas maneiras com que as mulheres estão lidando com a contracepção? Afinal não há estudos sobre a combinação de métodos como as mulheres os tem utilizado (percepção de fertilidade, camisinha, diafragma…).

Precisamos fazer perguntas e conexões e para além de uma escolha pessoal temos a responsabilidade de compreender como operamos essas preferências e nesse caminho auxiliar outras mulheres a fazerem escolhas informadas. Só não dá pra continuar achando muito normal receber amostra-grátis de anticoncepcional…

Halana Faria. Médica ginecologista do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde (São Paulo e Florianópolis)

 

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3 respostas a “Muito além do risco de trombose: relações entre saúde, política, meio-ambiente e contracepção”

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